Por que os escorpiões agora preocupam

Dezenas de caixas de plástico empilhadas do piso ao teto em uma sala climatizada de uma ala nova do biotério do Instituto Butantan abrigam cerca de 5 mil exemplares vivos de Tityus serrulatus, o escorpião-amarelo, a espécie que mais causa envenenamento em pessoas no país. Técnicos e pesquisadores do laboratório de artrópodes transitam entre as caixas com cuidado, mas sem receio, para alimentar os animais com baratas e grilos, retirados diariamente de um estoque de milhares de insetos mantido nas salas ao lado.
Os escorpiões – tanto o amarelo quanto os de outras espécies – são mantidos ali com duas finalidades. A primeira é a produção do soro usado para neutralizar a ação do veneno – ou peçonha—, cada vez mais importante em vista do aumento de quase 600% no número de acidentes e mortes causados por esses animais nos últimos 15 anos. Esse aumento é o resultado da expansão urbana sobre áreas antes ocupadas por matas, do acúmulo de lixo e entulho que atraem insetos que servem de alimento, e da capacidade desses animais de se adaptarem a ambientes variados, de florestas úmidas até desertos. De acordo com os registros do Ministério da Saúde, os escorpiões provocaram a maior parte dos acidentes com animais peçonhentos no país, com 74.598 casos registrados, e causaram mais mortes (119) que as serpentes (107), em 2015 (ver gráfico).
A segunda finalidade é a pesquisa dos efeitos – muitas vezes inesperados – do veneno de escorpiões no organismo humano. “O conhecimento sobre os componentes do veneno e seus efeitos ainda tem lacunas”, afirma a médica Fan Hui Wen, gestora de projetos do Butantan, que acompanha a produção de soro contra picadas de escorpiões. “Algumas espécies estão causando acidentes com manifestações clínicas diferentes das que até agora eram conhecidas.”
Em um estudo publicado neste mês de setembro na revista Toxicon, pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical, de Manaus, apresentaram o provável primeiro registro de um caso de acidente classificado como grave, com espasmos musculares e alterações neurológicas, causado por Tityus silvestris, uma espécie comum na Amazônia, em geral associada a acidentes sem gravidade. Um homem de 39 anos, com problemas no fígado causados por hepatite B – estava à espera de um transplante –, foi picado no cotovelo e no ombro enquanto dormia em sua casa na periferia de Manaus. Três horas depois, chegou ao hospital da Fundação Medicina Tropical relatando apenas dor e parestesia (formigamento) na região da picada, no braço esquerdo.
Em duas horas, porém, o homem apresentou dificuldade para respirar, taquicardia, hipertensão e espasmos musculares. O quadro se agravou. Ele foi internado em uma unidade de terapia intensiva, recebeu soro e outros medicamentos e foi liberado apenas sete dias depois. “Esse caso indica que o quadro clínico pode se complicar independentemente da espécie que causa o envenenamento”, diz o farmacêutico bioquímico Wuelton Marcelo Monteiro, pesquisador da fundação e um dos responsáveis pelo estudo. “Ainda há poucos trabalhos sobre as consequências e a variação dos efeitos dessa espécie de ampla distribuição geográfica na Amazônia.”
Entre as cerca de 160 espécies de escorpião encontradas no Brasil, apenas 10 causam envenenamento em seres humanos. De modo geral, o veneno – formado por proteínas, enzimas, lipídeos, ácidos graxos e sais – age sobre o sistema nervoso, causando dor intensa e dormência muscular no local da picada. Com menor frequência se observam efeitos sistêmicos como vômitos, taquicardia, hipertensão arterial, sudorese intensa, agitação e sonolência. A dificuldade de respirar caracteriza os quadros mais graves, verificados principalmente em crianças. As picadas por Tityus obscurus, comum na região amazônica, podem causar também efeitos neurológicos, com espasmos, tremores e uma sensação de choque elétrico. “Como o veneno escorpiônico pode ser rapidamente absorvido na corrente sanguínea”, diz o pediatra Fábio Bucaretchi, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), “as manifestações clínicas indicativas de envenenamento grave se iniciam em geral nas primeiras duas horas após a picada”.
Em um estudo amplo, publicado em 2014 na Toxicon, Bucaretchi e outros pesquisadores examinaram 1.327 casos de acidentes com escorpiões atendidos no Hospital de Clínicas da Unicamp de 1994 a 2011. Nesse levantamento, predominaram os acidentes apenas com reações locais (79,6%) e sistêmicas, com vômitos, sudorese e alterações no ritmo cardíaco (15,1%). A chamada picada seca – sem sinais de envenenamento – respondeu por 3,4% do total de casos analisados, enquanto os casos mais graves, com risco de morte, foram de 1,8%. “Todos os casos graves e o único caso letal ocorreram em crianças com idade menor que 15 anos”, diz Bucaretchi.
A maioria dos acidentes provocados por animais identificados foi atribuída ao escorpião-preto, Tityus bahiensis (27,7%), e ao amarelo (19,5%), normalmente o principal causador de acidentes e, neste estudo, responsável pelas ocorrências mais graves. O escorpião-amarelo inquieta também em razão de sua capacidade de adaptação ao ambiente urbano e ao tipo de reprodução. As fêmeas dessa espécie conseguem se reproduzir sozinhas, sem precisar de machos, por meio de um processo conhecido como partenogênese; cada ninhada pode resultar em até 30 filhotes.

Fêmea de escorpião-amarelo com filhotes após se reproduzir sozinha, por partenogênese

“Os estudos com a peçonha de Tityus serrulatus ajudam a entender o quadro de envenenamento, direcionam a produção de melhores antivenenos e possibilitam a descoberta de novas drogas terapêuticas”, explica a biomédica Manuela Berto Pucca, contratada como professora em julho deste ano pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Em seu pós-doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCF-RP-USP), ela isolou duas toxinas, chamadas Ts6 e Ts15, do veneno do escorpião-amarelo. Em testes in vitro, as duas toxinas inibiram tanto a proliferação de um grupo de células brancas do sangue, os linfócitos T, quanto a produção de uma citocina – molécula de comunicação do sistema imune – conhecida como interferon-gama. De acordo com esse trabalho, publicado em fevereiro deste ano na Immunology, essa propriedade poderia qualificar as duas toxinas como candidatas a medicamentos contra doenças autoimunes. “Os testes já estão sendo realizados e se apresentaram promissores”, diz ela.
Sob orientação do médico José Elpidio Barbosa, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FM-RP) da USP, Manuela desenvolveu um anticorpo monoclonal humano (produzido a partir de técnicas de clonagem de DNA), que deteve a ação do veneno do escorpião- -amarelo em testes em células e em modelos animais (camundongos). Com base nos resultados, os pesquisadores propuseram o uso do anticorpo como uma alternativa ao soro usado atualmente contra picadas de escorpiões. Segundo ela, uma das principais limitações do novo anticorpo é o custo de produção, estimado em R$ 3 mil por ampola.
“Queremos melhorar o antídoto, mas também procuramos por novos medicamentos que possam surgir de moléculas isoladas do veneno”, diz a química Fernanda Portaro, pesquisadora do Butantan. Ela e sua equipe e colegas de outros laboratórios do instituto isolaram e estão caracterizando dois compostos extraídos do veneno: um com ação pró-inflamatória e outro com atividade analgésica. “O veneno dos escorpiões é como uma orquestra executando uma sinfonia, em que cada elemento tem uma função específica, sobre os músculos, o sistema nervoso ou o coração”, afirma a bióloga Daniela Carvalho, da equipe de Fernanda.

Prevenção
Estima-se em 2,5 bilhões o número de pessoas em áreas de risco para escorpiões no mundo e em 1,2 milhão os casos anuais de envenenamento, com 3.500 mortes, causadas essencialmente pela demora em buscar o atendimento médico. “Os casos fatais podem ser evitados quando se busca ajuda médica com urgência e o tratamento é iniciado logo após o acidente”, ressalta Fan Hui Wen, do Butantan.
Depois de apresentar as salas dos escorpiões, ela mostra, em outra sala, a extração feita de modo manual. Cada animal recebe um choque elétrico de baixa intensidade na cauda e, em resposta, solta uma pequena gota esbranquiçada de veneno. É preciso manter uma grande população de escorpiões porque os animais não resistem a mais de cinco extrações induzidas por choque elétrico, explica Denise Candido, bióloga responsável pela extração de venenos dos escorpiões.
Os animais provêm de hospitais (em geral as pessoas os levam após picadas para identificação), de centros de controle de zoonoses ou de expedições dos próprios pesquisadores, e só entram na linha de produção após passarem por uma quarentena, que elimina aqueles com eventuais doenças. Depois, o método usado para produção de soros é o mesmo usado contra picadas de serpentes e aranhas: o veneno é diluído e aplicado nos cavalos da fazenda São Joaquim, no município de Araçariguama. Os 850 cavalos produzem anticorpos contra o veneno, que depois são extraídos de seu sangue para formar o soro, em um processo que leva de seis a oito meses. Segundo Hui, o Ministério da Saúde necessita de 80 mil ampolas de soro antiescorpiônico por ano, produzido no Butantan, no Instituto Vital Brasil, no Rio de Janeiro, e na Fundação Ezequiel Dias, em Minas Gerais.
“É muito importante prevenir acidentes, limpando os terrenos que possam abrigar escorpiões e evitando o acúmulo de lixo”, recomenda Bucaretchi, da Unicamp. Os especialistas consideram de baixa eficácia uma estratégia adotada em cidades do interior paulista e noticiada nos últimos meses: a criação de galinhas nos quintais de casas ou em condomínios. A razão é simples: apesar de serem predadores naturais dos artrópodes, as galinhas têm hábitos diurnos e os escorpiões são animais noturnos.
No passado, as soluções eram ainda mais inusitadas. No início da década de 1950, os moradores de Ribeirão Preto, então com uma população de quase 80 mil pessoas (hoje são cerca de 600 mil), usaram dois inseticidas hoje proibidos, o benzeno hexaclorado (BHC) e o diclorodifeniltricloroetano (DDT), para deter uma infestação de escorpiões – cerca de 10 mil foram capturados em banheiros, quartos de dormir, cozinhas e quintais de 1949 a 1951, de acordo com um relato na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Havia campanhas em rádios e jornais, palestras em escolas, pontos de coleta espalhados pela cidade e um prêmio, promovido pelo prefeito, para o estudante que coletasse o maior número de escorpiões.
Projetos
1. Estudo das toxinas Ts6 e Ts15 do escorpião Tityus serrulatus como potenciais drogas terapêuticas para o tratamento de doenças autoimunes (nº 2012/12954-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Eliane Candiani Arantes – Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCF-RP) da Universidade de São Paulo (USP); Beneficiária Manuela Berto Pucca; InvestimentoR$ 235.699,44.
2. Análise do potencial tóxico de proteases e peptídeos presentes no veneno do escorpião Tityus serrulatus e do poder neutralizante dos antivenenos comerciais: Aprimorando o conhecimento do veneno e seu mecanismo de ação (nº 2015/15364-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Fernanda Calheta Vieira Portaro – Instituto Butantan; Investimento R$ 97.681,32.
 
Fonte: Revista Pesquisa

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